Relações com comunidades de tecnologia, diversidade e inclusão

O que acontece quando plantamos sementes?

Caio Calado
9 min readApr 19, 2021
Uma pessoa carregando um vaso de planta abraçada e passando um ar de tranquilidade — ilustração criada utilizando Blush.design.

O ano era 1984, uma data importante para quem gostava e gosta de ler sobre ficções científicas que falam sobre o futuro da tecnologia. Inspirado no livro do George Orwell, esse foi o momento ideal para quebrar um conceito que inspirou muitas das gerações que estavam criando tecnologia naquele momento e ajudar elas a visualizarem o porque 1984 não seria como 1984 — curiosamente esse comercial veio a tona recentemente, mas com uma discussão bastante acalorada:

Naquela época, os computadores eram diferentes, o poder computacional era diferente, as nossas relações com as tecnologias eram diferentes e até mesmo a internet que a gente conhece hoje em dia mal existia. Contudo, a história não nega a relevância que o lançamento do Macintosh em 1984 teve no mundo da tecnologia e as portas que esse computador abriu para futuras gerações — por que esse computador em particular foi tão emblemático? Veja nesse vídeo detalhado do MKBHD.

Nesse período, além do nascimento de uma nova era dos computadores pessoais, também houve o nascimento das ações de evangelização e relacionamento com comunidades de tecnologia — naquela época, a sua grande maioria era dominada por pessoas da área de desenvolvimento de software e entusiastas de hardwares que faziam parte da cultura maker. Uma figura importante que atuou nos bastidores, mas que hoje é bastante conhecida foi o Guy Kawasaki, umas das primeiras pessoas a se tornarem “Evangelistas” no mundo da tecnologia e durante o período do lançamento do Macintosh, o time em que o Kawasaki atuava foi responsável pelo marketing do computador.

Apesar da história dizer que comercialmente o Macintosh não foi um grande sucesso e que teve uma certa influência na demissão do famoso CEO Steve Jobs, as iniciativas de relacionamento, educação e evangelização do Macintosh lideradas pelo grupo que Kawasaki estava envolvido foram um sucesso e ajudou fomentar milhares de comunidades e pessoas na área de desenvolvimento de software a desenvolver aplicações para o sistema operacional da Apple.

Contexto: pode parecer um detalhe simples, mas naquela época as tecnologias estavam deixando de ser físicas (hardwares) e estavam migrando para dentro do sistema operacional dos computadores (softwares). O comercial 1984 sugeria que os grandes computadores e mainframes deveriam deixar de existir para que uma nova era surgisse: a era dos computadores pessoais. Contudo, para que isso desse certo era necessário ter uma abundância de aplicações nesses novos sistemas operacionais, por isso, foi fundamental desenvolver uma forma que permitissem qualquer pessoa a desenvolver essas aplicações.

O próprio Steve Jobs, anos depois de ter saído da Apple e enquanto estava na liderança da NeXT, compartilhou numa aula para o MIT (aos 30min57) a importância das comunidades de tecnologia para o sucesso da sua nova empresa e adoção de novas tecnologias: “Se nossa estratégia de negócios diz que fazemos muitas coisas bem, mas a ponta de nossa flecha ou nosso cavalo de Tróia, que está nos levando a essas contas de grande e médio porte, é nossa capacidade de desenvolvimento de aplicativos personalizados, então nosso crescimento será controlado, entre outras coisas, pela comunidade de desenvolvimento disponível para essas empresas desenvolverem esses aplicativos. Agora, embora tenhamos reduzido o tempo de desenvolvimento para uma fração do que era, ainda sem [pessoas desenvolvedoras] por aí, nós não vamos vencer.

O desafio, embora conhecido, volta a tona em 2021: como encontrar, nutrir e educar essas comunidades e profissionais em escala? E como fazer com que essas pessoas possam ter sucesso nas suas carreiras, na adoção e criação de novas tecnologias?

Apenas para dar uma perspectiva do tamanho desse desafio, olha só alguns fatos:

  • Um mundo de transformações: devido a pandemia, a Transformação Digital das empresas avançou dois anos em apenas alguns meses (reportagem da Veja)
  • Escassez de pessoas qualificadas: Segundo um relatório da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação, um déficit de profissionais pode chegar a 260 mil até 2024. A escassez generalizada de profissionais de TI causa uma certa paralisação no desenvolvimento da estratégia das empresas, diz Ana Paula Prado, principal executiva no Brasil da agência online de recrutamento e seleção Infojobs. Com uma “cadeira vazia”, algum caminho de desenvolvimento pode ficar travado. (reportagem exame)
  • A necessidade de aprender: 74% das pessoas estão se preparando para aprender novas habilidades e (re)treinar para se manterem empregáveis no futuro e 60% pensam que ‘poucas pessoas vão ter trabalhos estáveis e com longo relacionamento no futuro’ (estudo da pwc)

Em resposta a esses desafios e como uma oportunidade de se posicionar no mercado, algumas empresas voltando, outras investindo mais e outras iniciando a realizar ações de educação, evangelização e incentivos a comunidades de tecnologia, diversidade e minorias. Aqui no Brasil, uma reportagem de 2021 do Estadão aponta: “[esse] gargalo de mão de obra no mercado de tecnologia cria um mercado promissor para startups desde a educação até a conexão com as empresas, na visão de especialistas, mais do que uma oportunidade, esses serviços são necessários para que o setor de tecnologia continue crescendo”.

Ascensão das relações com comunidades

Diante disso, surgem as novas áreas ou iniciativas que atuam estrategicamente na relação com essas comunidades de tecnologia, diversidade e inclusão. Em um outro artigo, sugeri algumas formas que essas empresas e as comunidades podem criar relações ganha-ganha entre si.

É bem provável que recentemente você tenha visto:

  • Empresas lançando algum bootcamp ou curso de formação — seja utilizando o seu produto ou de formação de uma área específica (ex: ciência de dados)
  • Comunidades organizando séries de mentorias e conteúdos com demanda de mercado — muitas vezes, as comunidades até criam feiras de contratação (ex: formação de lideranças femininas)
  • E até mesmo pessoas influenciadoras lançando suas frentes de educação e conteúdo para as suas respectivas áreas de atuação (ex: cursos para arrecadar doações)

As empresas hoje contam com times de Employer Branding, Especialistas em Conteúdos, Program ou Community Managers e algumas com pessoas voltadas para a área de tecnologia, aí surgem posições como as de Evangelistas, como por exemplo, Developer Relations ou Advocates. Não vou discutir muito o escopo de atuação de cada uma dessas áreas, pois existem algumas semelhanças e até mesmo atuações compartilhadas, mas de forma resumida: enquanto uma pessoa está para a marca e toda comunicação da empresa, a outra pode representar a empresa e representar a audiência da tecnologia da empresa internamente.

Em um artigo intitulado “Dev Rel: a nova bala de prata” a Carol Vila Boas, Developer Outreach Lead na Zup, fala brilhantemente: “Nas comunidades, eu sou os ouvidos da empresa e, dentro da empresa, eu sou a voz da comunidade.

Como atuam pessoas da área de relações com audiências técnicas?

Embora os próximos exemplos e referências sejam relacionadas a “Developers” (pessoas desenvolvedoras), você pode adaptar isso para a sua audiência, sejam essas pessoas da área de negócios, produto, criação, parceiras estratégicas, etc, nesse texto vou tentar me referir e utilizar o termo “audiências técnicas”.

Voltando lá para o início desse texto, onde o Steve Jobs fala da importância das comunidades para o sucesso de adoção de novas tecnologias (repare que isso é no início dos anos 90) e as ações de evangelização e educação do Guy Kawasaki, atualmente as empresas estão, mais do que nunca, investindo em educação e em pessoas que possam desenvolver essas relações. A área que geralmente planeja e executa essas ações é chamada de Developer Relations.

Em 2019, durante o evento Build, o até então GM para Developer Relations na Microsoft compartilhou um pensamento muito interessante sobre a área na indústria: “Em toda a indústria, as Relações com Developers estão se reinventando. É nosso trabalho ajudar developers a terem sucesso. E eu não disse com produtos da Microsoft. Nossa filosofia é ajudar primeiro e vender por último.

No artigo da Carol, ela também menciona que “Dev Advocate, como o nome já diz, advoga em torno de um produto ou tecnologia. [Essa pessoa é apaixonada] por dividir conhecimento (gratuito), está sempre [envolvida] em uma ou mais comunidades, é tido como referência técnica em pelo menos um tema ao qual “advoga”.”

Por outro lado, existem pessoas que apresentam a área como parte do time de Marketing, que também faz sentido, mas o escopo de atuação vai muito além: “Embora haja certamente um componente de marketing ao representar a empresa para clientes e a comunidade, trata-se igualmente de representar clientes para a empresa, a equipe DevRel traz feedback de nossos clientes para a equipe de produto e engenharia, a fim de conduzir uma melhor experiência de desenvolvedor para nosso produto.” (reportagem da Forbes)

Ajudar a ter sucesso na carreira ou com produtos, compartilhar conteúdos que educam ou inspiram, atualizar documentações de produtos, fazer relacionamento e coletar feedbacks. Entre outras coisas, um resumo criado por Reto Meier, Developer Relations no Google, sobre as competências de um time da área de relações com audiências técnicas seriam:

  • Acompanha e compartilha atualizações da empresas para o mercado e comunidades
  • Realiza ações de inspirações e awareness
  • Desenvolve recursos e conteúdos educacionais para audiências técnicas
  • Coleta feedback das comunidades e mercado
  • Acompanha o sentimento das comunidades

Um desenho desse ciclo:

Se bem implementado, esse time consegue ter um impacto positivo na receita da empresa, na capacitação do mercado, na formação de novos profissionais (que pode ser envolvendo o produto ou apenas pra algo relacionado a carreira) e mais importante: conseguem criar soluções relevantes para o mercado. Citando novamente o Jobs “embora tenhamos reduzido o tempo de desenvolvimento para uma fração do que era, ainda sem [pessoas desenvolvedoras] por aí, nós não vamos vencer.”

Em um outro artigo do Reto Meier, ele fala da importância disso: “Um ecossistema saudável eleva sua plataforma, fornecendo uma oferta mais rica do que apenas seus produtos, preenchendo as lacunas que você está despreparado, incapaz ou não quer preencher. Você sacrifica a exclusividade no mercado, mas em troca cria uma oportunidade maior para você e para os outros. Você cria uma torta muito maior em troca de cortá-la em fatias menores.”.

Com o tempo, é possível desenvolver um círculo virtuoso que seja ganha-ganha para todas as partes envolvidas:

Mas nem tudo é “developer relations”, afinal existem outros times que também lidam com essa parte de intermediar a comunicação da empresa com o mercado ou comunidades e vice-versa. A empresa Hoopy, especializada em Developer Relations, criou esse pequeno quadro que diferencia os tipos de relações com comunidades e o mercado:

  • Developer Relations: Estratégia de Desenvolvimento; Mentorias e Treinamentos; Programas de Reconhecimento; e Pesquisas e Análises de feedbacks das comunidades;
  • Developer Experience: Estratégia de Documentação; Onboarding e Treinamentos; Especificação de SDKs; e Treinamentos e Workshops;
  • Developer Marketing: Estratégia de Segmentação; Estratégia de Eventos; Marketing de Conteúdo; e Pesquisa de Mercado

“Que projeto de mundo você ajuda a construir com seu trabalho?”

Esta é uma pergunta que ainda me motiva a atuar com comunidades e desenvolver ações de relacionamento e educação para tecnologia. Existe uma citação que carrego comigo já alguns anos que sempre me faz refletir sobre a importância de construir essas pontes de conhecimento:

“Talento é igualmente distribuído, oportunidades não” — Leila Janah

Embora não esteja tão ativo como antigamente, atuo com comunidades e troca de experiências e conhecimento desde 2016, diria que mais do que nunca as empresas estão olhando para isso, mas convido você e essas empresas a não apenas iniciarem as suas próprias frentes de educação e relacionamento com comunidades, mas também apoiem as existentes.

Participe de um meetup, contribua com um blog de uma comunidade, se faça presente e dê suporte a outras comunidades que estão nessa jornada a mais tempo. Dê o primeiro passo e mande um alô para as comunidades, não espere que elas sempre precisam está atrás de você.

Nunca se esqueça que essas pessoas doadoras podem estar nessa jornada há mais tempo que vocês e que nessa relação, com intencionalidade positiva, todo mundo pode sair ganhando. Guy Kawasaki foi um dos primeiros evangelistas na área de tecnologia e compartilhou muitos materiais e livros bacanas sobre o assunto, em outras palavras, foi umas das primeiras pessoas que plantou essa sementinha de relações com audiências técnicas.

Ainda sobre essa questão de pessoas doadoras e compartilhar, tem um livro muito bacana que compartilha várias reflexões sobre isso do Adam Grant chamado Dar e Receber, onde destaco: “É o que eu acho mais magnético em relação aos doadores de sucesso: eles chegam ao topo sem reduzir os outros, encontrando maneiras de expandir a torta que beneficia a si e às pessoas ao seu redor. Enquanto o sucesso é soma zero em um grupo de tomadores, em grupos de doadores, pode ser verdade que o todo seja maior que a soma das partes.

Por fim, fecho com uma outra citação de uma amiga que já está nessa jornada há muito tempo e sempre aprendo com ela: Que projeto de mundo você ajuda a construir com seu trabalho? — Andreza Rocha

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Caio Calado

Conversational Experience Designer Consultant and Advocate // Community Manager @ Bots Brasil